Assim que Bob Dylan foi laureado com o prêmio Nobel de literatura em 2016, muitos setores da crítica retomaram a antiga querela da teoria da literatura: afinal, o que é literatura? Dylan para alguns não poderia ter recebido o prêmio. O argumento era nebuloso, mas partilhado. A razão disso é que nebuloso é o próprio conceito de literatura. Isso porque vencidos os ensaios positivistas que pretendiam aplicar o método das ciências exatas para todas as áreas do conhecimento, restou para a literatura aceitar que seu objeto não tem uma existência matemática ou objetiva. Se ela é menos em certeza, contudo, não o é em importância. Pode-se dizer, de início, que se trata de uma arte construída e reconstruída pelo diálogo social e que nasce, portanto, com a linguagem. Mas pode-se dizer que é arte da linguagem escrita? Saussure há tempos revelou a importância do que está por trás do escrito: “Mas a palavra escrita se mistura tão intimamente com a palavra falada, da qual é imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal; terminamos por dar maior importância à representação do signo vocal do que ao próprio signo. É como se acreditássemos que, para conhecer melhor uma pessoa, melhor fosse contemplar-lhe a fotografia que o rosto” (CURSO DE LINGUISTICA GERAL, 1995, p. 34).

O fato é que o que importa em essência para definição da literatura não é a forma pela qual as palavras se apresentam, pela fala ou pela escrita, mas a expressão do signo linguístico em forma de arte.  O engajamento dos recursos linguísticos para bem expressar e a concatenação de ideias por meio das palavras pode se ver tanto pela linguagem falada, quanto pela escrita. Isso não significa que não haja diferenças. A fala enquanto instrumento de comunicação permite, para além dos códigos linguísticos utilizados, o uso de entonações que acrescentam riqueza à mensagem. Por outro lado, por certo que a existência de um mínimo registro disso valida sua existência enquanto elemento efetivamente construído e sedimenta a fidelidade das construções linguísticas do texto a ser transmitido e não apenas a criatividade e eloquência de sua estória. Além disso, a linguagem escrita certamente possibilita construções literárias mais extensas. Não se olvide, não obstante, que a transmissão da linguagem pela fala também tem recursos mínimos de fidelização. A repetição e a rima, por exemplo, são parceiros recorrentes da literatura falada, dos cantos dos aedos, passando pelos trovadores e até mesmos dos nossos repentistas.

À parte essas considerações, não se pode olvidar a importância da própria riqueza do enredo, da estória por si, independentemente dos recursos formais pelos quais ela se apresenta. As fábulas, por exemplo, têm sua importância literária sedimentada no enredo, reconhecidas pela força da “moral da história”. Para essa literatura, cuja estória é mais importante que a construção formal, a validade da forma escrita serviria resumidamente para preservar a autoridade do autor, já que a linguagem falada simplifica e despersonifica o texto. Um poema ou mesmo uma história cosmogônica, mítica, passados pela tradição oral, têm um caráter literário evidente porque o enredo em si tem um caráter literário.

Note-se que em uma boa literatura a forma de alocação semântica pode trazer elementos de arte que transcendem a mera contação de um causo. Conta-se um novo, um novo olhar, um novo óbvio. Novo para o horizonte de compreensão (GADAMER) daquele leitor, já que as histórias muitas vezes são antiquíssimas. E nesse ponto, a importância do “estranhamento” apresentado pelos formalistas russos. O estranhamento que aqui é referido, à parte as considerações contextuais daqueles, pode envolver, em sua manifestação mais sublime, o desvelamento do óbvio e tem como forma de materialização um modo, um modo especial de inter-relação entre premissas de conteúdo.

Nesse ponto é necessário ressalvar que a estória apresenta por si seu caráter literário independentemente da graduação de seu valor artístico, de modo que é necessário diferenciar a identificação da arte em si, da identificação do valor da arte. E nesse caso as muitas literaturas distrativas escritas, publicadas e bem vendidas. O valor é um aspecto à parte, sobre o qual nem sempre haverá convergência dos críticos. De algum modo, contudo, algo se está a revelar para o leitor nesses casos.

Por outro lado, note-se que mesmo a estória não é imprescindível para a literatura. Afinal, os poetas estão dentro do rol literário, sem dúvida, mas não contam necessariamente uma grande estória. Claro, nem sempre, pois temos Marilia de Dirceu e Fausto. O que se deve ponderar é que independentemente da existência de estória, mesmo nos poemas mais sutis e abstratos há um sentido a se representar, um significado linguístico. Mesmo no caso do primeiro ganhador do Nobel de literatura, o poeta Sully Prudhomme que, além de poeta, era parnasiano. Não se trata, portanto, do enredo em si, da estória. Trata-se da representação de um significado, independentemente, ademais, da capacidade de esse significado seguir ileso da caneta do autor à cabeça do leitor.

Pode-se afirmar que a literatura se esboça nas representações linguísticas de um significado e se afirma onde delas se fizer arte. E onde houver um conjunto de estruturas linguísticas como signo linguístico em forma de arte, haverá literatura. Sobre isso, devem ser evidenciados os sincretismos. A linguagem dos concretistas, por exemplo, apresenta um misto de literatura e artes plásticas, já que o signo, na forma concreta, é o desenho e não a palavra, ainda que a conjunção entre a palavra e a forma concreta traduza uma mensagem, um significado. E desse modo também os sonetos bem “cantados”, por exemplo, que unem o caráter da arte linguística à arte musical na rima, apelando, diante disso, a duas formas de sensibilização do humano. A literatura, seja concretista, seja musicada, continua sendo literatura, em suas formas de sincretismo definitivamente incorporadas como os sonetos ou que lhe sejam relativamente novas, como o concretismo.

Voltando a Dylan, a grande questão é que ao se tratar de uma obra para Nobel o que se espera não é um autor de um poema, de um escrito, de um conto, mas de um robusto conjunto de estruturas linguísticas de prodigioso valor, capaz de formar um marco histórico. A premiação, portanto, pode ser um importante instrumento para evidenciação de novas formas de uso do signo palavra. Ante os últimos acontecimentos, a academia está em crise, se a percepção da literatura está, só para os que tomam a parte como o todo. Afinal, aqui cabe a frase batida de Leonardo Boff: “todo ponto de vista é a vista de um ponto”. (A AGUIA E A GALINHA)

O fato é que a elaboração desse conjunto estrutural demanda uma complexidade de criações relacionadas. Seja na forma, seja no conteúdo. A questão está, portanto, na complexidade de processos linguísticos apresentados. A literatura começa onde se manipula a linguagem com arte e se sublima quando se faz isso em caráter complexo e estruturado ou com uma simples eloquência inaudita.

A melhor literatura estará na capacidade de expressar de modo que melhor entretenha, alcançando o espírito, ou que melhor esclareça, alcançando o intelecto pelo desvelar que produz. Esse construir e esse desvelar que tocam o espírito e o intelecto com suas agnições são a essência da boa literatura. A literatura que melhor expressa. Afinal, onde está a palavra senão no significado e onde está a arte senão não libertação criativa do intelecto e do espírito?

Mas nesse ponto já incluímos Dylan. De boa qualidade, arte? Certamente. Qualidade para o Nobel? Essa é outra questão, que vamos deixar para logo, e talvez falar também de Roger Waters ou Charly Garcia. Talvez não seja a questão de ser ou não literatura, mas de dever ser ou não o foco do prêmio, ou ainda, da relevância da renovação que deveria ser apresentada para inaugurar a incursão de seu foco na literatura musical.

O fato é que de trovadores a parnasianos, dos empolados aos simplórios, das histórias água com açúcar best sellers aos complexos engavetados, a questão não é dizer quais deles são literatura por sua forma, mas o que se pode encontrar em cada um deles para que seja literatura. E nesse ponto, Terry Eagleton estava certo: “Nesse sentido podemos pensar em literatura menos como uma qualidade inerente, ou como um conjunto de qualidades evidenciadas por certos tipos de escritos que vão desde Beowulf até Virginia Woolf, do que como as várias maneiras pelas quais as pessoas se relacionam com a escrita” (TEORIA DA LITERATURA p. 13).

Vejo a literatura, enfim, no desvelar ou ocultar do significado pela linguagem, renovando o intelecto e  o espírito. Na arte somada à palavra da língua. Onde se manifesta, que a liberdade da arte venha nos surpreender!