{"id":260,"date":"2018-02-16T20:09:32","date_gmt":"2018-02-16T20:09:32","guid":{"rendered":"https:\/\/atinaliteratura.com.br\/?p=260"},"modified":"2021-03-04T19:44:51","modified_gmt":"2021-03-04T21:44:51","slug":"para-comecar","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/atinaliteratura.com.br\/para-comecar\/","title":{"rendered":"O Nobel e Bob Dylan. Afinal, o que \u00e9 literatura?"},"content":{"rendered":"\t\t
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Assim que Bob Dylan foi laureado com o pr\u00eamio Nobel de literatura em 2016, muitos setores da cr\u00edtica retomaram a antiga querela da teoria da literatura: afinal, o que \u00e9 literatura? Dylan para alguns n\u00e3o poderia ter recebido o pr\u00eamio. O argumento era nebuloso, mas partilhado. A raz\u00e3o disso \u00e9 que nebuloso \u00e9 o pr\u00f3prio conceito de literatura. Isso porque vencidos os ensaios positivistas que pretendiam aplicar o m\u00e9todo das ci\u00eancias exatas para todas as \u00e1reas do conhecimento, restou para a literatura aceitar que seu objeto n\u00e3o tem uma exist\u00eancia matem\u00e1tica ou objetiva. Se ela \u00e9 menos em certeza, contudo, n\u00e3o o \u00e9 em import\u00e2ncia. Pode-se dizer, de in\u00edcio, que se trata de uma arte constru\u00edda e reconstru\u00edda pelo di\u00e1logo social e que nasce, portanto, com a linguagem. Mas pode-se dizer que \u00e9 arte da linguagem escrita? Saussure h\u00e1 tempos revelou a import\u00e2ncia do que est\u00e1 por tr\u00e1s do escrito: \u201cMas a palavra escrita se mistura t\u00e3o intimamente com a palavra falada, da qual \u00e9 imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal; terminamos por dar maior import\u00e2ncia \u00e0 representa\u00e7\u00e3o do signo vocal do que ao pr\u00f3prio signo. \u00c9 como se acredit\u00e1ssemos que, para conhecer melhor uma pessoa, melhor fosse contemplar-lhe a fotografia que o rosto\u201d (CURSO DE LINGUISTICA GERAL, 1995, p. 34). <\/span><\/p>

O fato \u00e9 que o que importa em ess\u00eancia para defini\u00e7\u00e3o da literatura n\u00e3o \u00e9 a forma pela qual as palavras se apresentam, pela fala ou pela escrita, mas a express\u00e3o do signo lingu\u00edstico em forma de arte.\u00a0 O engajamento dos recursos lingu\u00edsticos para bem expressar e a concatena\u00e7\u00e3o de ideias por meio das palavras pode se ver tanto pela linguagem falada, quanto pela escrita. Isso n\u00e3o significa que n\u00e3o haja diferen\u00e7as. A fala enquanto instrumento de comunica\u00e7\u00e3o permite, para al\u00e9m dos c\u00f3digos lingu\u00edsticos utilizados, o uso de entona\u00e7\u00f5es que acrescentam riqueza \u00e0 mensagem. Por outro lado, por certo que a exist\u00eancia de um m\u00ednimo registro disso valida sua exist\u00eancia enquanto elemento efetivamente constru\u00eddo e sedimenta a fidelidade das constru\u00e7\u00f5es lingu\u00edsticas do texto a ser transmitido e n\u00e3o apenas a criatividade e eloqu\u00eancia de sua est\u00f3ria. Al\u00e9m disso, a linguagem escrita certamente possibilita constru\u00e7\u00f5es liter\u00e1rias mais extensas. N\u00e3o se olvide, n\u00e3o obstante, que a transmiss\u00e3o da linguagem pela fala tamb\u00e9m tem recursos m\u00ednimos de fideliza\u00e7\u00e3o. A repeti\u00e7\u00e3o e a rima, por exemplo, s\u00e3o parceiros recorrentes da literatura falada, dos cantos dos aedos, passando pelos trovadores e at\u00e9 mesmos dos nossos repentistas.<\/span><\/p>

\u00c0 parte essas considera\u00e7\u00f5es, n\u00e3o se pode olvidar a import\u00e2ncia da pr\u00f3pria riqueza do enredo, da est\u00f3ria por si, independentemente dos recursos formais pelos quais ela se apresenta. As f\u00e1bulas, por exemplo, t\u00eam sua import\u00e2ncia liter\u00e1ria sedimentada no enredo, reconhecidas pela for\u00e7a da \u201cmoral da hist\u00f3ria\u201d. Para essa literatura, cuja est\u00f3ria \u00e9 mais importante que a constru\u00e7\u00e3o formal, a validade da forma escrita serviria resumidamente para preservar a autoridade do autor, j\u00e1 que a linguagem falada simplifica e despersonifica o texto. Um poema ou mesmo uma hist\u00f3ria cosmog\u00f4nica, m\u00edtica, passados pela tradi\u00e7\u00e3o oral, t\u00eam um car\u00e1ter liter\u00e1rio evidente porque o enredo em si tem um car\u00e1ter liter\u00e1rio. <\/span><\/p>

Note-se que em uma boa literatura a forma de aloca\u00e7\u00e3o sem\u00e2ntica pode trazer elementos de arte que transcendem a mera conta\u00e7\u00e3o de um causo. Conta-se um novo, um novo olhar, um novo \u00f3bvio. Novo para o horizonte de compreens\u00e3o (GADAMER) daquele leitor, j\u00e1 que as hist\u00f3rias muitas vezes s\u00e3o antiqu\u00edssimas. E nesse ponto, a import\u00e2ncia do \u201cestranhamento\u201d apresentado pelos formalistas russos. O estranhamento que aqui \u00e9 referido, \u00e0 parte as considera\u00e7\u00f5es contextuais daqueles, pode envolver, em sua manifesta\u00e7\u00e3o mais sublime, o desvelamento do \u00f3bvio e tem como forma de materializa\u00e7\u00e3o um modo, um modo especial de inter-rela\u00e7\u00e3o entre premissas de conte\u00fado.<\/span><\/p>

Nesse ponto \u00e9 necess\u00e1rio ressalvar que a est\u00f3ria apresenta por si seu car\u00e1ter liter\u00e1rio independentemente da gradua\u00e7\u00e3o de seu valor art\u00edstico, de modo que \u00e9 necess\u00e1rio diferenciar a identifica\u00e7\u00e3o da arte em si, da identifica\u00e7\u00e3o do valor da arte. E nesse caso as muitas literaturas distrativas escritas, publicadas e bem vendidas. O valor \u00e9 um aspecto \u00e0 parte, sobre o qual nem sempre haver\u00e1 converg\u00eancia dos cr\u00edticos. De algum modo, contudo, algo se est\u00e1 a revelar para o leitor nesses casos. <\/span><\/p>

Por outro lado, note-se que mesmo a est\u00f3ria n\u00e3o \u00e9 imprescind\u00edvel para a literatura. Afinal, os poetas est\u00e3o dentro do rol liter\u00e1rio, sem d\u00favida, mas n\u00e3o contam necessariamente uma grande est\u00f3ria. Claro, nem sempre, pois temos Marilia de Dirceu e Fausto. O que se deve ponderar \u00e9 que independentemente da exist\u00eancia de est\u00f3ria, mesmo nos poemas mais sutis e abstratos h\u00e1 um sentido a se representar, um significado lingu\u00edstico. Mesmo no caso do primeiro ganhador do Nobel de literatura, o poeta Sully Prudhomme que, al\u00e9m de poeta, era parnasiano. N\u00e3o se trata, portanto, do enredo em si, da est\u00f3ria. Trata-se da representa\u00e7\u00e3o de um significado<\/u>, independentemente, ademais, da capacidade de esse significado seguir ileso da caneta do autor \u00e0 cabe\u00e7a do leitor.<\/span><\/p>

Pode-se afirmar que a literatura se esbo\u00e7a nas representa\u00e7\u00f5es lingu\u00edsticas de um significado e se afirma onde delas se fizer arte. E onde houver um conjunto de estruturas lingu\u00edsticas como signo lingu\u00edstico em forma de arte, haver\u00e1 literatura. Sobre isso, devem ser evidenciados os sincretismos. A linguagem dos concretistas, por exemplo, apresenta um misto de literatura e artes pl\u00e1sticas, j\u00e1 que o signo, na forma concreta, \u00e9 o desenho e n\u00e3o a palavra, ainda que a conjun\u00e7\u00e3o entre a palavra e a forma concreta traduza uma mensagem, um significado. E desse modo tamb\u00e9m os sonetos bem \u201ccantados\u201d, por exemplo, que unem o car\u00e1ter da arte lingu\u00edstica \u00e0 arte musical na rima, apelando, diante disso, a duas formas de sensibiliza\u00e7\u00e3o do humano. A literatura, seja concretista, seja musicada, continua sendo literatura, em suas formas de sincretismo definitivamente incorporadas como os sonetos ou que lhe sejam relativamente novas, como o concretismo.<\/span><\/p>

Voltando a Dylan, a grande quest\u00e3o \u00e9 que ao se tratar de uma obra para Nobel o que se espera n\u00e3o \u00e9 um autor de um poema, de um escrito, de um conto, mas de um robusto conjunto de estruturas lingu\u00edsticas de prodigioso valor, capaz de formar um marco hist\u00f3rico. A premia\u00e7\u00e3o, portanto, pode ser um importante instrumento para evidencia\u00e7\u00e3o de novas formas de uso do signo palavra. Ante os \u00faltimos acontecimentos, a academia est\u00e1 em crise, se a percep\u00e7\u00e3o da literatura est\u00e1, s\u00f3 para os que tomam a parte como o todo. Afinal, aqui cabe a frase batida de Leonardo Boff: \u201ctodo ponto de vista \u00e9 a vista de um ponto\u201d. (A AGUIA E A GALINHA)<\/span><\/p>

O fato \u00e9 que a elabora\u00e7\u00e3o desse conjunto estrutural demanda uma complexidade de cria\u00e7\u00f5es relacionadas. Seja na forma, seja no conte\u00fado. A quest\u00e3o est\u00e1, portanto, na complexidade de processos lingu\u00edsticos apresentados. A literatura come\u00e7a onde se manipula a linguagem com arte e se sublima quando se faz isso em car\u00e1ter complexo e estruturado ou com uma simples eloqu\u00eancia inaudita.<\/span><\/p>

A melhor literatura estar\u00e1 na capacidade de expressar de modo que melhor entretenha, alcan\u00e7ando o esp\u00edrito, ou que melhor esclare\u00e7a, alcan\u00e7ando o intelecto pelo desvelar que produz. Esse construir e esse desvelar que tocam o esp\u00edrito e o intelecto com suas agni\u00e7\u00f5es s\u00e3o a ess\u00eancia da boa literatura. A literatura que melhor expressa. Afinal, onde est\u00e1 a palavra sen\u00e3o no significado e onde est\u00e1 a arte sen\u00e3o n\u00e3o liberta\u00e7\u00e3o criativa do intelecto e do esp\u00edrito?<\/span><\/p>

Mas nesse ponto j\u00e1 inclu\u00edmos Dylan. De boa qualidade, arte? Certamente. Qualidade para o Nobel? Essa \u00e9 outra quest\u00e3o, que vamos deixar para logo, e talvez falar tamb\u00e9m de Roger Waters ou Charly Garcia. Talvez n\u00e3o seja a quest\u00e3o de ser ou n\u00e3o literatura, mas de dever ser ou n\u00e3o o foco do pr\u00eamio, ou ainda, da relev\u00e2ncia da renova\u00e7\u00e3o que deveria ser apresentada para inaugurar a incurs\u00e3o de seu foco na literatura musical. <\/span><\/p>

O fato \u00e9 que de trovadores a parnasianos, dos empolados aos simpl\u00f3rios, das hist\u00f3rias \u00e1gua com a\u00e7\u00facar best sellers<\/i> aos complexos engavetados, a quest\u00e3o n\u00e3o \u00e9 dizer quais deles s\u00e3o literatura por sua forma, mas o que se pode encontrar em cada um deles para que seja literatura. E nesse ponto, Terry Eagleton estava certo: <\/span>\u201cNesse sentido podemos pensar em literatura menos como uma qualidade inerente, ou como um conjunto de qualidades evidenciadas por certos tipos de escritos que v\u00e3o desde Beowulf<\/i> at\u00e9 Virginia Woolf, do que como as v\u00e1rias maneiras pelas quais as pessoas se relacionam com a escrita\u201d (TEORIA DA LITERATURA p. 13). <\/span><\/p>

Vejo a literatura, enfim, no desvelar ou ocultar do significado pela linguagem, renovando o intelecto e\u00a0 o esp\u00edrito. Na arte somada \u00e0 palavra da l\u00edngua. Onde se manifesta, que a liberdade da arte venha nos surpreender!<\/span><\/p>\t\t\t\t\t\t<\/div>\n\t\t\t\t<\/div>\n\t\t\t\t\t<\/div>\n\t\t<\/div>\n\t\t\t\t\t\t\t<\/div>\n\t\t<\/section>\n\t\t\t\t\t\t\t<\/div>\n\t\t","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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